Intensidade de anônimo
Intensidade é o caminho mais rápido para a dor. Ramon, infelizmente, tinha concluído isso mais cedo do que gostaria.
O rosto empapado de suor e a ramela no canto do olho gritavam sua noite de sono iniciada na madrugada, mas não era preocupado com sua aparência o suficiente para reparar no próprio desleixo. Escovou os dentes rápido demais e procurou uma camiseta amassada na gaveta, correndo para porta sem dar o costumeiro beijo de adeus na gata velha que lhe pertencia.
Ramon não fazia esse tipo. Outrora, jamais sairia de casa sem um bom banho ou sem despejar mais ração do que o necessário no comedouro de Gadot, a gata.
Entretanto, começou a perceber que até mesmo os hábitos mais banais foram consumidos por sua rotina; a maldita rotina.
Cursava direito na USP mas, se pudesse, ficaria o mais longe possível da universidade. Reconhecia que o sonho jurídico jamais fora seu — idéia fracassada de sua mãe ainda na adolescência, agora, aos 45, atendente numa padaria no centro graças a gravidez inesperada. Mas não considerava Ana Maria uma mãe ruim.
Meio distante? Talvez.
O fone de ouvido ainda cantava os últimos acordes da playlist, Zeca Baleiro era sua mais nova descoberta. A mochila era vazia exceto pelo notebook, a garrafa d'água e as decepções que pesavam suas costas.
Ramon era jovem demais para ser tão descrente.
Lembrava-se muito bem do tempo em que sorria mais, de quando ainda tinha motivos relevantes para tal. Não se considerava triste, mas o processo de percepção da realidade destruíra qualquer ilusão de alegria que sua mente infértil pudesse tentar criar. Era como esperar maçãs numa figueira seca.
Acreditava também que parte disso se devia a melancolia em que caiu depois da despedida de Patrícia, a ex namorada de personalidade forte que sumiu pós término. Jamais fora bom em finais, seu TCC vinha o provando isso cada vez mais.
Era uma mulher inteligente, a Patrícia — se ele pudesse, também fugiria de si.
A paixão foi líquida e fatal, o tipo de mistura capaz de invenenar até o mais racional dos homens. Não que Ramon fosse um deles.
Era um tremendo idiota enganado por qualquer um.
Maleável, como ele se define.
Amor era seu ponto fraco. De uma densidade grande, quase palpável. Ramon não sabia sentir pouco — ou sentia demais, ou sentia muito.
E essa era a principal razão de sua culpa; a capacidade de afogar alguém em suas marés altas sem querer.
Fazia isso com Patrícia, com a mãe, com os poucos amigos que tinha, com a gata. Era tão intenso que não sabia dar pouco sentimento; entrava fundo demais em piscinas quase sempre rasas. E, quando notava, já era tarde demais.
Sempre haverão as pessoas que preferem molhar os pés.
Culpava-se demais por tudo. Pedia desculpas demais sem saber porquê, temia respostas longas e sentimentos vagos porque sabia que, de vago, não tinha nada. Ramon transbordava sentimentos e não sabia como pará-los. Entregava mais alma do que corpo.
Até em suas decepções.
Pessoas intensas sempre serão intensas. Nem a dor, nem o ódio e nem a raiva destroem essa característica tão única — peculiar.
A característica que confere ao seu dono tanta emoção, que o afoga em seu próprio mar de fel. Que o mata aos poucos, que o consome como fogo em papel, que dilacera até a mais resistente das peles. Que dói. Que questiona se o problema é sentir demais ou se todo mundo sente de menos.
O que é amor no século da putaria? Que é tristeza no século da depressão? Que é uma chama? Que é uma faísca?
Quem ainda é intenso no século do amor líquido?
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